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QUEIMA, RAPARIGAL !!! UM GRITO DE GUERRA NA BOEMIA CEARENSE

Em uma de minhas estadas na capital alencarina, em visita ao “Sebo do Geraldo”, que fica na rua 24 de maio, no centro de Fortaleza, adquiri um exemplar do livro “Sábado Estação de Viver – Histórias da boemia cearense”, de autoria do professor e historiador Juarez Leitão, editado em 2000, pela Prêmio Gráfica e Editora Assis de Almeida, com prefácio de Lúcio Alcântara, ex-governador do Ceará.

Tal livro foi idealizado por uma confraria de amigos que se reunia aos sábados nos transmissores da Radio Verdes Mares, de propriedade do confrade  Edson Queiroz, que dela também participava, para saborearem uma feijoada sabática. Coube ao confrade Juarez Leitão a incumbência de escrever a história da confraria, recuperar sua origem e evolução como registro de uma forma de sociabilidade urbana contemporânea.

Em notas introdutórias, Juarez Leitão ressalta que o título do livro, Sábado Estação de Viver, tem haver com as duas criações de Deus: O Mundo em seis dias e o sábado, sétimo dia, para o merecido descanso.

Ler este livro de Juarez Leitão, para quem viveu em Fortaleza a partir do anos 30 é reviver o passado, as serenatas ao luar, a boemia dos velhos tempos, a molecagem cearense, relembrar das confrarias da Praça do Ferreira, as primeiras  e homéricas farras na praia de Iracema, enfim, os primeiros entreveros sexuais de nossa mocidade, que não voltarão jamais !

Em Brasília, no período de 2003 a 2007, residi na 215 Norte do Plano Piloto, na ponta da Asa Norte, próxima ao Lago Paranoá. E nessa quadra comercial tinha uma distribuidora de bebidas de propriedade do cearense Cesar, onde aos sábados era frequentada por uma turma boa de gole, em torno de um churrasquinho e muita birita.

O amigo Cesar, era obeso e diabético, por isso evitava bebidas alcoólicas, porém, quando resolvia beber começava cedo, varava na noite e ia até o amanhecer do dia seguinte. Nestes seus porres sabáticos e já altas horas do sábado ele costumava dar altos e repetidos gritos, “QUEIMA, RAPARIGAL !, era para ele um desabafo, uma gozação, um grito de guerra saudosista.

Eu, conhecia este grito, desde jovem em Fortaleza, porém não sabia a origem de tal manifestação emocional alcoólica, que só vim descobrir quando li o livro de Juarez Leitão, retratando histórias da boemia cearense.

Tudo teve início, segundo o autor no capítulo “Fortaleza no tempo das pensões alegres”. Diz ele, que nos anos 30 o coronel Cordeiro Neto assumiu a chefia de Polícia e como uma de suas primeiras providências resolveu retirar do centro da cidade as meretrizes, que circulavam pela Praça do Ferreira, causando incômodo  às damas da sociedade que por ali passavam.

Cordeiro Neto, conseguiu seu intento com a ajuda de cidadãos de bem, que  nas horas vagas eram clientes das mulheres de vida fácil; acomodando as raparigas nas imediações da praça. As mulheres de melhor aparência foram instaladas discretamente no centro, no alto dos velhos sobrados das Ruas Major Facundo e Barão do Rio Branco, abandonados  a partir dos anos vinte, surgindo então as arrendatárias, que neles  instalaram seus cabarés. Por outro lado, as raparigas em fim de carreira, sujas e desdentadas, foram situadas num gueto infame chamado de “Curral das Éguas”.

Conta o autor que, “uma ocorrência dos finais dos anos trinta explica a origem de famosa expressão, ainda hoje corrente em Fortaleza. Uma das Lojas da rua Floriano Peixoto sofreu um incêndio em plena manhã de sábado. Nos altos dessa loja havia uma pensão de mulheres. As inquilinas, que tinham dado duro até de madrugada, ainda dormiam, quando fez-se o alvoroço na rua. Populares tentavam apagar o fogo com baldes d’água, mas as chamas subiam perigosamente, já ameaçando o sobrado. As mulheres, despertadas pelos gritos da multidão, do alto das janelas, pediam socorro, braços erguidos, descabeladas, ainda vestidas em seus trajes de dormir, no maior desespero: “Salvem a gente, pelo amor de Deus !!! Foi quando um gaiato, numa explosão de sadismo gritou da rua: “QUEIMA, RAPARIGAL!!!”

À época as Pensões Alegres eram recantos de prazer e alegria. Os melhores músicos da cidade animavam seus salões. Muitos bons artistas trabalhavam nas pensões, como Luiz Assunção, o acordeonista Julinho, o violonista Moreira Filho, os bateristas Pinheirinho e Cassundé, além do Alcides Couringa, mestre do cavaquinho e do iniciante cantor Evaldo Gouveia (recentemente falecido aos 91 anos), dentre outros.

Tudo ia muito bem, até que   Cordeiro Neto se elegeu prefeito de Fortaleza para o quadriênio 1959 – 1963, época em que voltaram as perseguições. O general moralista proibiu a venda de bebidas no centro depois das sete da noite, bem como as orquestras depois das dez. A rigorosa media do alcaide foi respondida com o deslocamento dos cabarés para os bairros e os que permaneceram no centro passaram a adotar a música eletrônica, as radiolas e as máquinas de ficha.

Surgiam então, as boates da periferia: a boate da Margô, o cabaré da Santa, a casa da Natália, o cabaré da Gaguinha, a casa de Irene Cabral, a casa da Leila, Foram cabarés, que marcaram os tempos áureos da boemia cearense. Cada uma com suas histórias, seus personagens, suas fantasias, seus caftens.

Falar dessas instituições voltadas para a prostituição na cidade de Fortaleza, são outras histórias, que poderão ser contadas em uma outra ocasião; o fato é que se alguém ouvir o grito de guerra “queima, raparigal” numa noite, numa boate ou num botequim da vida, pode ter certeza que quem está gritando é cearense, que viveu na época de ouro da boemia cearense.

Helio P. Leite

Um cearense dos anos quarenta, emigrado.